Palavras para quê?
Palavras para quê?
Hoje, com Portugal a arder, é comum falar-se de incêndios, da propriedade e das suas consequências nefastas, catastróficas e irreparáveis, quando se trata da perda de vidas humanas, e já são muitas!
- Basta de hipocrisia política, comum a toda a casta política que nos tem governado e da que porventura anseia governar, isto numa pretensa subserviência à Constituição da República Portuguesa, que todos juram cumprir e fazer cumprir, sem levar na devida conta o que dela própria consta e se passa a realçar, muito embora não pondo em causa, que a mesma, ainda peca por excesso e deficiência, mas isso não permite a omissão verificada sobre o regime da propriedade, de que agora, com os incêndios, tanto se fala.
A verdade é que as pessoas se preocupam mais com os chamados “Direitos, Liberdades e Garantias” e com a sua força jurídica (art.º 18º) muito embora ignorando o seu âmbito, que se encontra enunciado no título II da constituição (art.º 17º), que abrange do art.º 24º ao art.º 57º, o que mereceu de Gomes Canotilho e Vítal Moreira in Constituição da República Portuguesa anotada, Vol. I Coimbra editora 2007, pág. 800, as lúcidas palavras: na C.R.P o direito de propriedade não faz parte do elenco dos “direitos, liberdades e garantias (embora goze do respetivo regime, naquilo, que, nele reveste natureza análoga daqueles”. E acrescentam: «Não se trata tanto de desvalorizar a importância do direito de propriedade como de lhe retirar a dimensão quase sacrossanta que lhe era conferida no “individualismo possessivo” e na concepção tradicional conservadora dos direitos fundamentais assente na indissociabilidade da liberdade e propriedade».
O direito de propriedade privada tem assento no art.º 62º da Constituição que determina:
1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indeminização».
«V. O direito de propriedade é garantido “nos termos da Constituição” (nº 1, in fine). A fórmula parece supérflua, mas não é: trata-se de sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição para ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional.»
Na verdade, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, tendo por base o princípio do direito romano, a que os juristas medievais chamaram de ius «utendi, fruendi et abutendi», e que ainda influencia o direito civil moderno, sendo entendido que o proprietário tem o poder, sobre a sua propriedade, de uti (usar ou obter alguma utilidade sem alterar ou consumir); fruendi, desfrutar ou recolher os frutos periódicos sem alterar a substância; abutendi, inicialmente traduzido como direito de abusar, deve ser antes traduzida por direito de consumir, o que afasta o individualismo e o egoísmo que falsamente lhe eram assinalados ( A. Santo Justo, OP. CIT Pág. 279).
Nesse sentido, o art.º 1305º do Cod. Civil, sob a epígrafe de «Propriedade das coisas», dispõe:
«O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Para melhor esclarecimento do alcance art.º 1305º referido, deve ter-se presente o disposto no art.º 203º do Cod. Civil que dispõe:
«As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis, consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes ou futuras».
O art.º 204º, nº 1, alínea a) do mesmo código diz-nos que «são coisas imóveis, os prédios rústicos e urbanos».
Por sua vez, o art.º 82º da C.R.P, sob a epígrafe (setores de propriedades meios de produção) determina:
1. É garantida a existência de 3 sectores de propriedade dos meios de produção
2. O sector público é constituído pelos meios de produção, cujas propriedades em gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas
3. O Sector privado é constituído pelos meios de produção cujas propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou coletivas privadas, sem prejuízo do disposto do número seguinte
4. O sector cooperativo e social compreende especificamente:
a) Os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas em obediência aos princípios cooperativos, sem prejuízo das especificidades estabelecidas na lei para as cooperativas com participação pública, justificadas pela sua especial natureza;
b) Os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais;
c) Os meios de produção objecto de exploração colectiva por trabalhadores;
d) Os meios de produção possuídos e geridos por pessoas colectivas, sem carácter lucrativo que tenham como principal objectivo a solidariedade social, designadamente entidades de natureza mutualista.
Conforme se pode alcançar da leitura deste artigo, a posse e a gestão são indissociáveis.
Por sua vez o art.º 88º da C.R.P, determina, sob a epígrafe de «meios de produção em abandono»:
1. Os meios de produção em abandono podem ser expropriados em condições a fixar pela lei, o que terá em devida conta a situação específica da propriedade dos trabalhadores emigrantes
2. Os meios de produção em abando injustificado podem ainda ser objecto de arrendamento ou de consseção de exploração compulsivos em condições a fixar por lei.
Porém, a C.R.P. não define o conceito de abandono de meios de produção (cfr, nº 1) cabendo, por isso à lei fazê-lo, porém, também, não o faz. No entanto os identificados autores, manifestam a sua opinião no sentido de que, seguramente na “densificação “do conceito hão-de entrar dois elementos: primeiro, a verificação de uma situação de inexploração ou inaproveitamento (terras incultas, estabelecimento fabril encerrado, etc.); depois, a permanência dessa situação durante um período de tempo adequado à conclusão de abandono”. Ora, é nossa opinião que o conceito de abandono também deve ser aplicado às situações que caraterizam desleixo na posse, de modo a ser censurado pela lei, o que muito embora suceda em termos infraconstitucionais, meramente por motivos políticos, em manifesta contradição com a ideologia política da Social Democracia, que foi seguida v.g. por Willy Brandt, Helmut Schmidt, Olof Palme, Harnold Wilson e Tony Brair, já que se limita a penalizações meramente fiscais.
Por outro lado, a posse é indissociável do direito de propriedade (art.º 1251º Cod. Civil), daí a sua perda em caso de abandono (1267 in, alínea a) do Cod. Civil) com a consequente perda do direito de propriedade pelo anterior proprietário em benefício do novo possuidor (art.º 1287º do Cod. Civil) ou do Estado. (art.º 1345º do Cod. Civil).
Já no direito romano, o abandono (derelictiu) acarretava a perda da propriedade. Porém, segundo A. Santo Justo (manual de direito privado romano terceira edição, petrony) sobre esta matéria existiam duas corretes: a dos Sabinianos que entendiam que a coisa abandonada deixava imediatamente de pertencer a quem a abandonasse, enquanto os Proculeanos sustentavam que a propriedade só sessava quando alguém se apoderasse dela. O princípio Sabiniano foi o acolhido pelo direito Justiniano.
A verdade é que muitas propriedades não têm dono conhecido, situação que se acha contemplada no art.º 1345º do Cod. Civil nos seguintes termos: «as coisas imóveis sem dono conhecido consideram-se do património do Estado». No entanto, é do conhecimento geral que, grande parte da propriedade ardida não tem proprietário conhecido ou que se deve a falta de limpeza e cuidados necessários à sua existência.
Eu próprio sou proprietário de terrenos herdados de meus avôs, ainda menor, os quais ninguém me consegue identificar.
O único que consegui identificar, situa-se no centro de uma aldeia, portanto, com aptidão para a construção. Porém, não obstante, a minha manifestação de vontade de o entregar a autarquia respectiva, para o seder a um freguês que o quisesse, e das diligências efetuadas junto da «BOLSA NACIONAL DE TERRAS» criada pela Lei nº 62/11, de 10 de dezembro, acabei por ter de o doar ao proprietário confinante, já que ninguém o queria e a limpeza respetiva orçava os 500 € por ano. Isto era o custo de ser proprietário conhecido por força de inventário de menores.
Há, pois, que respeitar a propriedade a começar pelo Estado, usá-la e cuidar dela, o que em grande parte não tem sucedido, causando prejuízos enormes, muitas vezes devido aos proprietários não serem conhecidos ou eles próprios não terem meios para conhecerem as respectivas propriedades.
Pergunta-se: Será que o Estado tem capacidade para conhecer “os imóveis cujo dono não é conhecido? – Claro que não tem, enquanto não for efetuado um levantamento cadastral da propriedade.
Esta situação revela, uma manifesta incapacidade da governação em identificar o próprio território em que governa.
Mas, agora falando de incompetência, permita-se-nos reproduzir o art.º 15º, nº 2, do Dec. Lei nº 124/2006 de 28 de junho, na sua redação actual que determina:
2 - Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edificações, designadamente habitações, estaleiros, armazéns, oficinas, fábricas ou outros equipamentos, são obrigados a proceder à gestão de combustível numa faixa de 50 m à volta daquelas edificações ou instalações medida a partir da alvenaria exterior da edificação, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante.
Por sua vez o art.º 37º do mesmo diploma dispõe:
1 - A fiscalização do estabelecido no presente decreto-lei compete à Guarda Nacional Republicana, à Polícia de Segurança Pública, à Polícia Marítima, à Direcção-Geral dos Recursos Florestais, à Autoridade Nacional de Protecção Civil, às câmaras municipais e aos vigilantes da natureza.
2 - A formação e o acompanhamento da execução de tarefas de defesa da floresta contra incêndios de elementos de corpos ou organismos de fiscalização é exercida pelo Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, em articulação com o ministro da tutela.
3 - A competência relativa à definição das orientações no domínio da fiscalização do estabelecido no presente decreto-lei é do Ministro da Administração Interna e do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas.
Porém, ainda hoje, pode ser visto na Rua de Fernandes Barbosa, em Francelos, Conselho de Vila Nova de Gaia esta imagem:



E bem perto, na travessa Dr. Ferreira Alves também esta imagem, isto, arruamentos onde praticamente todos os dias passa alguma das entidades fiscalizadoras acima identificadas.

Eu advogado há perto de 50 anos sou obrigado a reconhecer que, muitas vezes «a justiça morre solteira»!
Por isso é pertinente perguntar: palavras para quê?
(clama o povo: há que pôr os senhores deputados a trabalhar sobre esta matéria; sobre a situação dos bombeiros voluntários, esperamos falar em breve acerca do seu regime jurídico)
Abraço, até breve!